Até quando, Boca do Sertão? — Chamamento aos historiadores
Entre bairros, distritos, vilas e periferias
Local pra quem ta na correria
Ou geralmente na calmaria
Cidade onde rico suja e pobre limpa.
Cidade tradicional, de costume
Sem iniciativa ou atitudes efetivas
Contagiam mais de dois mil
E normalizou perder vidas.
Cidade conservadora
Pouco emprego, cultura, educação
Opção!
A cidade que sobrevivemos
É aqui
Na boca do sertão.
(Apesar de tudo
Tão bão)”
Lucas Formaggi
Chamamento aos historiadores
Itapetininga acaba de completar 250 desde sua fundação como vila em 1770. A própria opção pela escolha formal da sede do recém formado povoado é envolta por um ar de mistério e intriga: diz-se que no dia em que tal escolha fora tomada, Domingos José Vieira presenteou a Simão Barbosa Franco, o responsável pela escolha do núcleo, com uma mula marchadeira para ser favorecido.
Seria isso um sinal do que estaria por vir? Um predeterminismo que nos empurraria para sempre a tradição da servidão e da camaradagem? Não. Nem a História e muito menos o Futuro funcionam dessa maneira. Podem afirmar que nossa cidade tenha protagonismo: desde sua existência estratégica para o pouso das tropas vindas do Sul; por fatos importantes da história brasileira terem se desenrolados aqui; por ser aqui a “Terra das escolas” ou “Atenas do Sul Paulista”, devido ao seu número de instituições de ensino, principalmente no final do século XIX e início do XX; ou então que personagens históricos são frutos dessa terra, como Venâncio Ayres ou a família Prestes (presentes até no hino municipal, que nos doutrinam desde a mais tenra idade). De tanto que nos é repetido, interiorizamos esses dizeres como fatos cristalizados e estáticos no tempo: que se não fossem os grandes nomes e as grandes instituições aqui atuantes, Itapetininga não seria essa maravilha, com “ar de cidade turística”, como um grande amigo me dissera, após eu ter perguntado sobre as impressões da cidade em que acabara de se mudar.
Entretanto, em pesquisas durante meu curso de licenciatura, me deparei com duas expressões, que causariam um certo impacto nessa minha ótica, ainda cristalizada em relação a história de minha cidade. “Boca do sertão” e “ramal da fome” me soaram como ofensa, ainda mais a alguém orgulhoso de suas origens. Um choque balançou meu cérebro: certas curiosidades, que sempre achei interessantes, e as cargas teóricas, obtidas durante a licenciatura, entraram em conexão. Uma sombra se formou na imagem de minha cidade natal: eram os porões de nossa história oficial. Nele esperam a ser resgatados inúmeras respostas, para incontáveis problemas existentes atualmente em nossa sociedade: desde os por quês de um município tão extenso, com 1800 quilômetros de área total, possuir uma área urbana de apenas 60 quilômetros quadrados; os motivos de nossa defasagem industrial ser tão grande, mesmo tão próximo a Sorocaba e a maior cidade do Hemisfério Sul (São Paulo); as razões pelas quais um município, cujo nome é de origem indígena, não possuir comunidades indígenas remanescentes, ou políticas no sentido de identificação dos mesmos; as razões pelas quais não ficaram gravados nomes de personagens históricos femininos, negros, indígenas, camponeses ou operários (tais personagens não existiram e/ou não foram cruciais para a construção da cidade e da sociedade em que vivemos?) etc. O número de questões é infinita. Ela se limita apenas à criatividade, vontade e disposição de ir atrás e resgatar tais acontecimentos, para trazer as respostas a problemas do presente de nossa cidade. Isso serve para nosso país como um todo.
Oracy Nogueira, grande sociólogo, estabeleceu-se e estudou as relações raciais em nossa cidade por quase uma década, ainda entre os anos de 1950 e 1960, de lá pra cá, um longo hiato na produção de estudos sérios acerca das relações humanas em nossa cidade se estabeleceu. Felizmente, desde os anos 1990, novas produções acerca da realidade local têm surgido: desde produções de cunho historiográfico acerca da história da saúde de nossa cidade, pesquisas sociológicas acerca do processo de industrialização, pesquisas averiguando a qualidade das águas do Rio Itapetininga, levantamentos antropológicos acerca das lendas e mitos em assentamentos de nossa região, pesquisas na área de patrimônio material, etc. Tais produções são respostas a lacunas deixadas pelos entusiastas que escreveram o grosso dos manuais e livretos que assumem-se como o relato oficial.
A história local está novamente em voga: no debate teórico, ela é um dos ramos que mais vem ganhando adeptos. Esse texto é um chamamento a todos aqueles que possam contribuir com a construção desse percurso. Para que construamos uma nova história de nossa cidade: uma comprometida com as diversas formas tomadas pelas lutas de classes que aqui tiveram palco! Rasguemos o véu que impermeia os personagens quase santos já consolidados em nossa memória! Questionemos os círculos e instituições de poderosos, que completam séculos! Traremos à luz a história de muitos que ficaram nas sombras dos poucos ilustres!
A História, assim como a guerra, é política e palco de batalhas. Em um momento de acirramento de tensões, não devemos nos abster de tomar lado. O papel da História é crucial para a formação das mentalidades dos sujeitos. Se almejamos pulsação do setor cultural em nossa cidade, devemos demonstrar a importância da valorização de nossas origens. Origens essas, em sua grande maioria, que não são frutos de capitães da casa grande, e sim da mistura de indígenas, pretos, imigrantes, camponeses e operários.
Assim como o apagão no cinema foi motivo para as chamas na viatura de polícia e no ataque da população à sede da empresa de energia, em 1958, que as trevas as quais a história popular fora relegada, sejam o estopim da criação de uma Nova Cultura.
Edwin Kitch Taves — Historiador em movimento